Sombra e Cinzas, o conto brasileiro do universo de The Witcher

O universo sombrio, brutal e fascinante de The Witcher, criado por Andrzej Sapkowski e eternizado nos livros, jogos e adaptações para as telas, continua a inspirar fãs ao redor do mundo. Entre monstros, magia e dilemas morais, esse cenário rico ganha novas vozes e perspectivas.

Uma dessas vozes é a de Lucas Covezzi, que transforma sua paixão pela saga em narrativa, explorando as sombras que se escondem nas margens das estradas e nos cantos esquecidos do Continente. O conto que você confere a seguir é um tributo autoral ao mundo dos bruxos, repleto de ação, tensão e personagens marcantes.

Prepare-se para mergulhar em Sombras e Cinzas, uma história inédita que poderia muito bem estar entre os contos oficiais da saga.

Sombra e Cinzas conto
Capa do conto

Sombra e Cinzas: Conto do Bruxo de Kovir

Pela estrada lamacenta que acompanhava o rio Ismena, os dias se tornavam mais frios no Norte. Ele caminhava sem se importar com a baixa temperatura. O reino da Teméria ainda sofria com a retirada das tropas de Nilfgaard para o sul. Restava apenas morte, destruição e fome.
Planejava passar a noite em Vizíma e depois seguir para Velen. Ouro e desespero não faltariam por lá.
Sob o capuz negro, seus olhos amarelos vasculhavam a estrada de terra batida. O cheiro ferroso de sangue seco atingiu-o antes de ver a cena: uma família, morta junto à carruagem tombada. O homem, provavelmente o pai, morrera lutando — braços amputados. A mulher enforcada logo depois. O filho não devia ter mais que dezessete invernos.
Suspirou. Puxou a guia do cavalo negro, seu companheiro silencioso, e amarrou-o a uma árvore seca. Cavou três covas de maneira rápida e desajeitada, mas suficiente. Deitou cada corpo com cuidado.
— Descansem em paz — murmurou, antes de traçar o sinal de Igni. Chamas dançaram e consumiram a carruagem, tingindo o céu cinza de laranja.
O capuz caiu. Cabelos negros, desgrenhados e curtos, uma cicatriz marcando o lado esquerdo do rosto. No pescoço, o medalhão de prata com a cabeça de grifo tremulava, já começando a escurecer. O frio se entranhava na espinha.O som de cascos aproximando-se fez-lhe franzir o cenho.
— Vejam só, rapazes… agora temos aberrações nobres — desdenhou uma voz gorda.
O bruxo se virou. Um grupo de seis jovens nobres surgia na estrada, montados em cavalos bem tratados. Dois empunhavam espadas, os outros riam da cena diante deles. O bruxo permaneceu imóvel, avaliando. Nenhum sorriso, nenhum medo. Apenas olhos amarelos que queimavam sob a penumbra.
— Melhor seguirem viagem. Está anoitecendo, e para vocês, é perigoso — devolveu o bruxo, seco. O sorriso morreu nos lábios de todos. Os olhos do gordo brilharam com ódio.
— Deveria mandar te enforcarem por essa afronta, aberração — rosnou ele.
— Não se preocupem comigo, sou só um viajante — respondeu o bruxo, virando-se em direção ao cavalo. A afronta foi maior ainda.
— Como ousa dar as costas para o filho do intendente de Vizíma? — bufou o gordo, a raiva quase saltando da voz.
— Poderia ser até Foltest, e eu não ligaria para porra nenhuma. Ou acha que têm alguma chance contra mim? — retrucou o bruxo, a mão pairando perto da espada, já próximo do alforje.
Os rapazes entenderam a ameaça e engoliram em seco. Esporaram os cavalos e seguiram rumo à cidade. O bruxo sabia que isso não passaria despercebido; logo alguém o abordaria, talvez a guarda.
— E eu só queria passar discretamente por aqui — murmurou, montando no cavalo. Lançou um último olhar para a carruagem em chamas antes de esporear o animal, que galopou em direção à cidade.
Não demorou muito para que a estrada de terra batida se transformasse em pedra, sinal de que se aproximava do perímetro urbano.
O vento começou a soprar forte enquanto ele caminhava pelas ruas de Vizíma. Entrou na primeira estalagem que encontrou. Por sorte, havia um estábulo ao lado. Carregava as duas espadas na bolsa de equipamento.
Uma moça de cabelos castanhos presos em trança, sardas no rosto, suada e com bochechas rosadas, varria o chão quando o viu.
— Boa noite, senhor. Temos apenas um quarto. É só para uma noite? — disse ela, sorridente e nervosa. Não parecia se importar com os dois olhos amarelos que a observavam.
— Vou pagar por uma semana. Quanto fica? — perguntou ele, puxando a bolsa de moedas.
— Cento e vinte orens — respondeu ela. Ele bufou de leve.
— Todas as refeições inclusas, na taverna ao lado — acrescentou, rindo nervosamente.
— Certo — concordou ele, entregando as moedas. Ela mostrou-lhe o quarto, e ele se surpreendeu com o tamanho.
— Lençóis e colchão. Valeu cada peso — murmurou, atirando a bolsa de equipamentos ao lado da cama.
Após descansar, foi até o estábulo alimentar seu companheiro com um pouco de alfafa, e em seguida seguiu para a taverna. Assim que entrou, o cheiro de cerveja azeda, temperos e fumaça tomou conta. Uma dezena de vozes se misturava, algumas cabeças se viraram na direção dele, outras estavam bêbadas demais para notar.
Ele viu a moça que o atendera mais cedo. Ela servia algumas mesas e, ao encontrá-lo, sorriu antes de se encaminhar para ele. Mas um soldado com as cores da Teméria segurou seu braço.
— Vem aqui, docinho… não quero só comida essa noite, preciso de algo mais — disse ele, rindo com os companheiros da mesa.
— Me solta! Seu idiota! — ela tentou se soltar, mas o soldado puxava-a para seu colo na cadeira.
— Algum problema? — a voz do bruxo cortou o ar. Todos na mesa se silenciaram. Ela conseguiu se soltar.
O soldado tinha cabelos ruivos, barba vasta da mesma cor e exalava cheiro de sangue, cerveja e mijo.
— Quer brigar com o sargento da terceira infantaria da Teméria? — ele se levantou, aproximando-se a poucos centímetros do bruxo.
— Tenha respeito por quem serve sua mesa — respondeu o bruxo, sem desviar o olhar.
— Senhor, quer mesmo enfrentar o mutante? — alertou um dos homens da mesa.
— Por essa vagabunda? Jamais — cuspiu o ruivo, as palavras pesadas de desprezo.
A moça tocou o braço do bruxo.
— Não precisa… venha, vou te arrumar uma mesa longe deles — pediu quase em súplica.
O bruxo se virou e a seguiu. Não esboçava absolutamente nada no rosto. Mas ela tinha a certeza: se precisasse, ele acabaria com todos ali sem esforço.
Sentou-se em silêncio.
— Vou trazer o que comer — disse ela, antes de correr até o balcão. Voltou pouco depois com uma travessa de madeira, uma caneca e uma jarra de cerveja.
O bruxo pegou um pedaço de carne, mastigou devagar.
— Aceita jantar comigo? — perguntou, sem levantar o olhar da travessa.
Ela corou, hesitante.
— Não sei… meu tio pode ficar furioso se me vir aqui, em vez de atender os outros clientes.
Ela acabou cedendo e se sentou em silêncio. O bruxo a fitou como se fosse a primeira vez que realmente a notava desde que entrara na taverna.
— Você foi a única aqui que não me tratou com desprezo. Aquele desprezo comum. Não se intimidou. Por isso a convidei. Conheceu muitos bruxos? — perguntou, servindo a caneca de cerveja para ela. Um gesto raro, improvável. Por um instante, parecia outra pessoa.— Sim… conheci um. Ele era como você. Um guerreiro implacável, contido apenas pela sanidade de não transformar cada insulto em chacina. Lembro dele dizer que bruxos devem evitar entrar em brigas desnecessárias. — Ela sorriu de leve, como quem divaga em lembrança. — Tinha cabelos brancos… e era ranzinza.
O bruxo esboçou um sorriso. Pequeno, mas suficiente para fazê-la arregalar os olhos, surpresa.
— A propósito… sou Aron, de Kovir. Kaer Seren. Não há muitos de nós — revelou entre uma mordida e outra.
— Hanna. Daqui mesmo — respondeu ela, rindo ao finalmente saber o nome do bruxo.
Conversaram até tarde, partilhando histórias curtas, comentários soltos. Quando a noite esfriou demais, cada um se recolheu aos próprios aposentos.
Aron não costumava dormir até tarde. Na manhã seguinte, levantou-se antes do sol nascer. Ao colocar o pé para fora do quarto, encontrou Hanna no corredor, arrumando algumas coisas. O céu ainda guardava o azul profundo da madrugada. Devia ser cinco e meia.
— Hanna — cumprimentou, a voz grave, passando por ela sem parar. Seguiu para o estábulo.
Ao sair em direção aos estábulos, Aron deteve-se. Uma procissão de encapuzados avançava pela rua estreita, passos arrastados que soavam como murmúrios de ferro. Entre eles, porém, uma figura destoava. O cavalo branco reluzia como marfim à luz da manhã, e sobre ele repousava uma silhueta coberta por manto de cetim negro.
O aroma de mel e morangos chegou antes mesmo do olhar. Aron parou de súbito, quase contra a vontade. E então os olhos castanho-esverdeados encontraram os seus.
Serena. Cachos negros que caíam como ondas pesadas sobre a pele pálida. Lábios vermelhos, não da cor de morangos — morangos eram doces — mas da cor de vinho derramado, da cor de sangue fresco. E o sorriso, aquele sorriso que não prometia nada além de desgraça.
Aron sentiu o estômago pesar. — Droga — murmurou, quase para si mesmo.
Sabia o que viria. Com Serena, nunca havia reencontros simples. Havia lembranças, havia desejo, havia ruína. E, inevitavelmente, aldeias queimadas.
— Não creio no que meus olhos veem… Aron de Kovir. Em Vizíma. — A voz de Serena cortou o ar como lâmina polida, e em seguida, com um simples gesto, ordenou que os guardas parassem.
O colar de obsidiana com a borboleta entalhada em safiras brilhou, um lampejo que Aron conhecia bem demais. Conhecia como se fosse uma cicatriz.
Serena desmontou com a leveza de quem nunca precisou aprender a cair. Aproximou-se, e antes que ele pudesse recuar, segurou-lhe o braço com familiaridade perigosa. O toque quente, quase afetuoso, foi um golpe mais cruel que qualquer lâmina. Era lembrança condensada em carne.
— Agradável como sempre — disse Aron, forçando um sorriso que não alcançou os olhos.
— Não seja grosseiro. — Serena resmungou, mas o resmungo soava falso, encenado, como quase tudo nela.
— Detesto cidades grandes. — Ele devolveu, seco, e o riso dela veio leve, cristalino, carregado de veneno disfarçado em mel.
Sem pedir, ela o puxou em direção aos estábulos. — Onde está o Barão? Estou com saudades. — Serena se adiantou, como se fosse dona do lugar.
O cavalo de Aron bufou alto, reconhecendo-a. Aproximou-se dela com ares de velho cúmplice, e ela, sem cerimônia, acariciou-lhe a crina.
Aron cruzou os braços. — Traidor.
O animal bufou de novo, como se respondesse, e Serena riu, inclinando-se sobre o focinho do cavalo.
— Até as bestas me recebem melhor que você. —
Barão fora alimentado e penteado. Agora, satisfeito, relinchava no estábulo como se fosse ele o verdadeiro senhor da comitiva. Aron e Serena seguiram para a taverna, que começava a encher com o cheiro de pão fresco, cerveja aguada e cebolas fritas. Mal se sentaram juntos a uma mesa, o burburinho caiu alguns tons. Olhares se cruzaram. Murmúrios surgiram.
— Isto aqui está ficando cada vez mais cheio, George… — disse um homem ao estalajadeiro, coçando a barba rala. — Ontem era só o bruxo. Hoje temos uma feiticeira. E dizem as baladas do mestre Jaskier que essa combinação sempre termina em encrenca.
O estalajadeiro apenas lançou um olhar rápido, medido, em direção à mesa deles.
Serena ergueu a cabeça com um sorriso quase doce. — Calado. — Sua voz deslizou como navalha afiada. — Sua mulher ficaria bem triste se eu cortasse sua ferramenta com uma única palavra. E, cá entre nós, ela anda reclamando bastante da sua… incompetência.
O riso não veio. O homem empalideceu, baixou a cabeça e, de repente muito devoto da própria vida, arrastou-se para uma mesa nos fundos.
Serena respirou fundo, engolindo o enjoo que vinha com a magia de sondar mentes. Virou-se para Aron, que apenas cortava o pão com a ponta da faca, indiferente.
— A discrição nunca será o seu forte — disse ele, sem erguer os olhos.
Serena recostou-se, cruzou as pernas e apoiou o queixo na mão. — E o mau humor nunca deixará de ser o seu.
— O que a bela Serena veio fazer numa cidade recém-desocupada pelo império nilfgaardiano? — Aron finalmente ergueu o olhar.
— Foltest. — Serena mordeu um pedaço de pão como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Ada voltou a ter… problemas. Com a maldição. E como sou a única perita de Aretuza por perto, fui convocada. Convocada e, claro, regiamente paga.
Aron suspirou. — Então é hora de eu pensar em partir. Deixar você trabalhar.
— E perder a celebração de ver a princesa livre da maldição? — Serena arqueou uma sobrancelha. — Sabia que ela vai se casar?
— Não me importo. — Ele voltou a cortar a carne, mastigando devagar.
— Eu também te amo, Aron. — O sorriso dela veio carregado de veneno e lembrança. — Esqueça o que aconteceu em Ellander.
O bruxo ergueu a caneca, engoliu um longo gole de vinho e encarou a borda do copo. — Sim. Uma ótima lembrança. — A voz era seca como pedra.
Naquele instante, os dois se calaram. A taverna, cheia de vozes e risadas, parecia agora mais distante. Como se a simples menção a Ellander tivesse criado um vazio entre eles, um vazio cheio de sangue, fumaça e gritos.
Hanna observava de longe, discreta atrás do balcão, as mãos ocupadas com canecas que não precisavam tanto assim de limpeza. Serena percebeu. Percebeu e mergulhou fundo demais. O rosto da feiticeira escureceu, os olhos assumiram o brilho felino de uma gata prestes a arranhar.
— Então… fez amizade com a sobrinha do estalajadeiro. — Tentou disfarçar, mas o veneno do ciúme escorreu pela voz.
Aron suspirou, longo, pesado. Um suspiro de cansaço, como quem já antecipa a tempestade. — Está sondando a mente da moça?
— Como ela ousa pensar esse tipo de coisa com o meu Aron? — Serena murmurou quase entre os dentes, os dedos apertando o cabo da faca com força demais, como se resistisse ao impulso de arremessá-la.
Aron encostou-se na cadeira, cruzou os braços e a encarou com aquela calma que só aumentava a provocação. — O seu Aron? — perguntou, seco. — Serena, por Melitele… você cansa até as paredes.
No balcão, Hanna desviou o olhar, vermelha, mas não cega. Fingiu não ouvir, mas as mãos tremiam ao alinhar as canecas.
A porta da taverna escancarou-se com estrondo. O gordo da noite anterior entrou primeiro, a cara vermelha de satisfação mal disfarçada. Atrás dele, o sargento temeriano de barba ruiva farejou o ar como um cão de caça.
— Fez mais amizades? Que coisa… inteligente para um bruxo — murmurou Serena, o canto da boca repuxado em sarcasmo. Mas os olhos dela já não estavam em Hanna, e sim nos recém-chegados.
Aron resmungou algo ininteligível, empurrou a cadeira para trás e começou a se erguer. Mas a mão de Serena pousou em seu ombro, firme, perfumada e fria como ferro recém-forjado.
— Ali! — o gordo apontou, quase cuspindo de ansiedade. — Lá está ele! Foi ele, pai!
O intendente entrou, pavão de carne. As roupas eram tão berrantes que mais pareciam tiradas de um baú de bufão: veludo verde, capa vermelha, botões dourados reluzindo sob a luz da lareira. Em cada dedo, um anel. No pescoço, colares de ouro que tilintavam a cada passo, como correntes de escravo invertidas.
O sargento deu um passo adiante, pronto para saltar sobre Aron. Mas Serena levantou-se.
— Bom dia, senhores — disse ela, com um sorriso que não era sorriso. A voz envolveu o ar, quente e aveludada, como vinho derramado.
Os homens piscaram, perderam o compasso. O intendente esqueceu por um momento da própria fúria, o sargento paralisou com o braço suspenso, e até o gordo se calou, com a boca aberta como um peixe fora d’água. A taverna inteira pareceu prender o fôlego.
— Sou a representante de Aretuza. — A voz de Serena cortou o ar como lâmina. — E preciso do bruxo para realizar o que foi solicitado. Logo, ele está sob a proteção do rei Foltest. Decidam. Querem a forca… ou a espada?
O silêncio caiu pesado. Gargantas secas engoliram em uníssono.
Mas o olhar de Serena pousou sobre o gordo. Penetrou fundo. Viu os pensamentos dele, os desejos sujos, a fúria mesquinha. Um instante bastou para que a feiticeira desejasse esmagar-lhe o crânio ali mesmo, espalhar sua mente pela parede como uma melancia podre contra pedra. A mão dela crispou-se, mas conteve-se. Por agora.
— Então… podemos resolver de outra forma. — A voz do intendente saiu mais baixa, menos pomposa. — Estão convidados para um jantar esta noite. Em minha residência. Eu insisto.
Serena sorriu. Um sorriso tão brilhante que feria os olhos. — Será… fantástico.
O intendente e seus homens recuaram, um a um, deixando atrás o cheiro de suor frio e ressentimento. A taverna retomou a respiração, mas não o conforto. Nada estava como antes, embora parecesse.
— Vai ficar comigo aqui? — perguntou Aron, surpreso. — Achei que preferiria um hotel luxuoso, para enterrar todas as suas tralhas.
— Não vou deixar o meu Aron sozinho com donzelas interesseiras. — Serena aproximou-se, o olhar felino de sempre. — Você é meu. Só meu. Entendeu?
Ele riu baixo, cortando o som como quem espanta moscas. — Bom. Preciso repor o estoque de ervas para as poções. — O riso dele tornou-se seco. — Provavelmente terei de lidar com a estrige que Geralt de Rívia enfrentou. Talvez eu mate a princesa no processo.
O sorriso de Serena endureceu como metal. — Nem brinque com isso, ou eu mesma te mato. — A ameaça era mansa, mas tinha ferro por dentro. — Se algo assim acontecer, nós dois seremos enforcados, queimados ou enterrados. Você prefere qual?
Aron ergueu a caneca e deu um gole, olhando-a por cima do copo, como quem pesa um destino e decide esperar. — Escolho a espada, como sempre. — Murmurou. — É mais rápida.
A porta da taverna se escancarou outra vez, batendo contra a parede com um estalo. Aron fingiu ignorar, mas a mão já estava pousada sobre o cabo da espada.
— Mestre bruxo? Onde está o bruxo? — a voz de um rapaz ecoou, trêmula, quase em pânico.
Ele surgiu na soleira: cabelo chamuscado, rosto tisnado de fuligem, um dos pés descalço. Cheirava a suor, estrume e madeira queimada. Quando se aproximou da mesa, o fedor pareceu se espalhar como um manto.
Serena tapou o nariz, sem se importar com a falta de delicadeza.
— Por Melitele… que visão logo cedo — resmungou, franzindo o nariz.
— Perdoe-me, senhorita — o rapaz inclinou a cabeça, ofegante — mas um dragão atacou meu estábulo, lá na entrada sul. A cidade inteira já comenta que um bruxo chegou, e… vim direto procurar. A besta devorou três das minhas novilhas em dois dias.
Aron arqueou uma sobrancelha, o descrédito estampado. — Dragão? Aqui? — a voz dele pingava sarcasmo, como se a própria palavra fosse uma piada.
— Sim, voava. Escamas vermelhas, uma crina atrás dos chifres. Pegou a novilha como se fosse um saco de batatas e a levou para a colina — jurou o rapaz, olhos arregalados.
— Chifres e crina… hm. — Aron coçou o queixo, cético. — Existe alguma recompensa por esse monstro?
— Conversem lá fora. — Serena abanou a mão diante do nariz, impaciente. — Quero terminar meu café sem vomitar.
O bruxo se levantou e acompanhou o sujeito até a porta. Do lado de fora, o cheiro era menos cruel, embora o rapaz continuasse suado e trêmulo.
— Não que eu saiba, senhor, mas… eu junto moedas. Pago o que for preciso por esse dragão. E a cabeça dele vai enfeitar minha parede. Eu voltarei — disse, antes de sumir pela esquina, deixando Aron a rir sozinho.
— Dragão… — murmurou, divertido, voltando para a taverna.
Mas o riso morreu nos lábios ao notar Serena à mesa com um homem de túnica vermelho-vinho e uma boina ainda mais ridícula. Aron parou atrás dele, silencioso, encarando a nuca do sujeito. Este se virou, arregalando os olhos antes de se erguer apressado.
— Vejo que alguém andou me perseguindo. O que está fazendo aqui, Piotr? — perguntou o bruxo, reconhecendo o velho conhecido comerciante.
O homem abriu um sorriso nervoso. — Aron! Olha, me perdoe por Ellander… eu devia ter comprado menos explosivos. Não foi minha intenção.
— Cala a boca. — Aron se sentou de frente para Serena e para o intruso, os olhos semicerrados. — Estão me seguindo?
Os dois trocaram olhares breves, fingindo inocência. Serena mordeu o lábio como se fosse achar graça da cena. Piotr coçou a nuca. Nenhum deles convenceu.
— Escuta… olha, Aron… eu realmente sinto muito por Ellander. O desgraçado do fornecedor jurou que as bombas não eram tão potentes. A emboscada contra o basilisco deu certo pelo menos — tentou Piotr, rindo nervosamente.
— Claro. — Aron não levantou os olhos, apenas girou a caneca de vinho entre os dedos. — A parte da prisão que caiu em cima de mim foi um detalhe irrelevante, imagino. Ao menos o basilisco morreu soterrado. E metade dos prisioneiros do intendente junto dele. Até os que deveriam ser interrogados sobre os saqueadores da região.
Piotr secou o suor da testa com a manga, encarando Serena como quem busca salvação. — Serena… você estava lá. Poderia me ajudar, não acha?
A feiticeira ergueu as sobrancelhas, felina. — Sim. Estava lá. E ajudei. — Um risinho escapou, carregado de malícia.
Piotr engoliu em seco. Aron, recostando-se na cadeira, soltou um suspiro carregado de sarcasmo. — Somos três desafortunados, parece. Destinados a nos encontrarmos e destruir tudo o que tocamos.
Serena deu de ombros, divertida. O comerciante baixou a cabeça, torcendo o chapéu ridículo entre as mãos como se fosse capaz de torcer a própria má sorte.
Um alvoroço começou do lado de fora. Aron, com sua audição aguçada, captou primeiro: algo que não era humano. Levantou-se sem pressa, caminhou até a porta e olhou o céu. Uma sombra passou rasante sobre a cidade. Grande, mas não um dragão. Menor.
— Wyvern — murmurou, sem hesitar.
A besta desapareceu além dos muros, rumo ao sudoeste, justamente a direção indicada pelo rapaz esfarrapado. Os olhares na rua se voltaram de imediato para o bruxo, como se sua simples presença já fosse a resposta para o problema.
— Mestre bruxo, o senhor vai caçar a criatura, não vai? — a pergunta saiu nervosa, mas logo foi seguida por um coro de outras vozes. Em segundos, Aron estava cercado.
Ele suspirou. Já se arrependia de ter saído apenas para identificar a sombra.
Piotr surgiu empurrando curiosos, abrindo caminho como se fosse o arauto do destino. — Ele vai sim, pessoal, podem ficar tranquilos. Por uma quantia, é claro.
Aron fez uma careta. — E assim começamos outro episódio — rosnou.
— Não vai ser como em Ellander, eu prometo — sorriu Piotr, nervoso, suando sob a boina ridícula.
— Uhum — respondeu o bruxo, sem olhar para ele.

Agradecemos a Lucas Covezzi por compartilhar conosco esse conto envolvente e cheio de personalidade. Sombras e Cinzas é mais do que uma homenagem ao universo de The Witcher. É uma expansão sensível e ousada de suas possibilidades narrativas, escrita com respeito, criatividade e paixão.

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Author Otávio Luiz
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