A passagem da infância para a vida adulta em histórias de fantasia

As histórias de fantasia cativam pessoas por diversas razões, como a exploração de novos mundos, a fuga da realidade e a reflexão sobre questões complexas. Entretanto, a conexão emocional com os personagens é um elemento muito importante, especialmente para jovens que passam pela transição da infância para a vida adulta. Personagens heroicos que enfrentam desafios e superam adversidades podem inspirar os jovens a encontrar sua própria coragem e resiliência. Ademais, personagens que passam por uma jornada de autodescoberta permitem ao leitor e espectador se identificar com eles, refletindo sobre suas próprias identidades e objetivos.

A série literária “A Crônica do Matador do Rei” de Patrick Rothfuss ilustra perfeitamente essa relação de identificação entre os leitores e os personagens. A saga é tão impressionante que o autor George R.R. Martin elogiou o primeiro livro como “a melhor fantasia épica de 2011”. O protagonista Kvothe, que parte em busca de vingança contra aqueles que mataram sua família, é um exemplo de personagem que enfrenta desafios e supera adversidades, inspirando os leitores a encontrar sua própria coragem e resiliência. Além disso, sua jornada de autodescoberta permite aos leitores se identificarem com ele, refletindo sobre suas próprias vidas.

A busca por um propósito

A princípio a trama de O Nome do Vento não parece se tratar de uma narrativa original. Contudo, o romance não foca na aventura de um grande guerreiro empunhando uma espada à procura de justiça. O epicentro da obra está justamente em mostrar como uma pessoa comum lida com as perdas. E também como estas perdas podem dá um sentido para sua vida, um objetivo para continuar seguindo em frente. E este objetivo muitas vezes pode significar a perda da inocência, pois traçar uma meta de vida significa esquecer a despreocupação que temos na infância. No início do capítulo 12 de O Nome do Vento, Kvothe na condição de narrador em primeira pessoa nos diz:

“Quando crianças, raramente pensamos no futuro. Essa inocência nos deixa livres para nos divertirmos como poucos adultos conseguem. O dia em que nos inquietamos com o futuro é aquele em que deixamos a infância para trás.” – O Nome do Vento. Pág. 84.

Esta afirmação é tão significativa porque resume o maior desafio de se tornar adulto: adotar uma perspectiva de vida e pensar diariamente no amanhã. Quando crianças nós somos imediatistas e levamos uma vida baseada em momentos. Quando adultos nos preocupamos com o futuro e nos tornamos ansiosos.

Porém, apesar desta frase estar presente na referida obra, este é um tema recorrente em diversas histórias de fantasia. A perda da inocência da infância simbolizando a passagem para a vida adulta pode ser observada em várias aventuras já escritas. Cada uma apresentando personagens sofrendo esta passagem ao seu modo e com suas próprias peculiaridades. O que Kvothe nos diz é, na verdade, algo que sintetiza um dos conflitos primordiais em histórias da literatura fantástica – e em nossas próprias vidas. Os exemplos são tão numerosos que gerariam uma longa discussão. No entanto aqui apresento alguns dos mais conhecidos, destacando as situações gerais em que a passagem da infância para a vida adulta ocorre.

Kvothe (A Crônica do Matador do Rei)

Kvothe de O Nome do Vento.

O personagem que nos deu a emblemática frase sobre deixarmos a infância para trás é o mesmo que em momentos antes no livro definiu sua própria infância como “uma infância feliz, crescendo no meio de um interminável parque de diversões”. Nada poderia corroborar mais com a ideia de não que não pensamos no futuro quando criança.

Kvothe, filho de artistas itinerantes, passou os primeiros anos de sua infância viajando com a trupe da família, realizando apresentações artísticas em diversas localidades. Para ele o mundo se resumia àquilo e parecia que nunca iria mudar. Claro que ele como toda criança já sabia que um dia iria crescer. Todavia, esta não era uma questão presente em seus pensamentos. Tudo o que importava para ele era continuar vivendo do jeito que o deixava feliz e que, em seu inconsciente, seria eterno.

A perda da inocência

A mudança aconteceu quando seus pais decidiram compor uma canção sobre um lendário grupo chamado O Chandriano. Infelizmente este grupo nunca gostou de que informações a seu respeito fossem reveladas. Assim sendo, em uma única noite o Chandriano assassinou toda a trupe, exceto Kvothe que estava brincando no bosque naquele momento. Foi neste momento que Kvothe, ao se ver sozinho no mundo, percebeu que sua infância não duraria para sempre. Ele passaria os próximos anos vivendo nas ruas de uma cidade chamada Tarbean, lutando diariamente para sobreviver e sempre se preocupando com o próximo dia. Posteriormente ele muda seus objetivos e, em vez de sobrevivência, diária ele se dedica a investigar sobre o Chandriano. Seu objetivo se torna não apenas vingar sua família, mas também entender o que motivou tal grupo a assassiná-la.

O fato importante é que a vida do personagem passou a ter um significado. Ele encontrou no massacre de sua família um objetivo para prosseguir e com isso elaborou planos para o futuro, fazendo-o deixar a infância para trás. A vida adulta lhe deu uma perspectiva no momento em que a despreocupação infantil lhe foi tirada.

Frodo Bolseiro (O Senhor dos Anéis)

Elijah Wood como Frodo Bolseiro.

O protagonista do livro escrito pelo pai da fantasia moderna foi durante três décadas o que podemos definir como um perfeito hobbit. Ele vivia no Condado e morava com seu tio em uma toca chamada Bolsão. Frodo conhecia as histórias de aventuras de seu tio Bilbo quando este era mais novo. Contudo, estas histórias lhe pareciam lendárias e representavam uma realidade muito distante da sua. A vida pacata e bucólica do Condado tinha os ingredientes perfeitos para um hobbit criança levar uma vida tranquila e sem preocupações com o futuro. Ironicamente, no caso de Frodo a preocupação com o futuro veio no ano em que ele deixou de ser oficialmente criança.

“Mais doze anos se passaram. Todo ano os Bolseiros davam animadas festas duplas de aniversário em Bolsão; mas agora se entendia que alguma coisa muito excepcional estava sendo planejada para aquele outono, Bilbo ia fazer onzenta e um anos, 111, um número bastante curioso, e uma idade muito respeitável para um hobbit (mesmo o Velho Túk só havia chegado a 130); e Frodo ia fazer trinta e três, 33, um número importante: o ano em que se tornaria um adulto.” — A Sociedade do anel, p. 21.

Frodo então não apenas atingiu a maioridade, ele também passou a de fato se comportar como adulto, uma vez que passou a pensar no futuro. Seu tio partira do Condado e deixara com ele a responsabilidade de guardar o Um Anel. Posteriormente ele também foi incumbido da missão de levar o anel de volta para as Fendas da Perdição e ali destruí-lo. Este caminho, além de tirar de Frodo a sua despreocupação de infância, lhe levou a um destino que o deu feridas que jamais cicatrizariam. Tudo isso, novamente falando, coincidindo com o exato ano em que ele se tornou um hobbit adulto. Frodo perdeu a calma e tranquilidade da infância no Condado e ganhou a inquietação com o futuro.

Harry Potter (franquia homônima)

Daniel Radcliffe como Harry Potter.

A infância de Harry Potter foi marcada pelo sofrimento, já que ele vivia com seus tios, que detestavam magia e o maltratavam. No entanto, sua vida mudou subitamente quando recebeu a oportunidade de estudar na escola de magia e bruxaria de Hogwarts. Lá, Harry descobriu um mundo de possibilidades e fez amigos, encontrando pela primeira vez laços e afetos verdadeiros. Durante anos, sua vida se resumiu a estudar magia e aproveitar a vida em Hogwarts, sem muitas preocupações com o futuro.

Tudo o que importava para Harry era estudar em Hogwarts e aproveitar toda a magia que a escola lhe oferecia. As aulas de Defesa contra as Artes das Trevas, o Quadribol, o chá na cabana de Hagrid aos sábados, os feriados em Hogsmeade. E, principalmente, a companhia de seus amigos. Claro que questões como qual profissão ele seguiria ao se formar vinham à tona conforme os anos passavam. Porém, não eram preocupações relevantes, pois não apresentavam ameaça ao seu modo de vida alegre e simplório.

A infância interrompida

Até que a última tarefa do Torneio Tribuxo veio e com ela a morte de Cedrico e o Retorno de Voldemort. Harry passou a enxergar os testrálio e a inquietação com o futuro pairou em sua mente. Logo, Harry teve motivos de sobra para se preocupar, pois sabia que Voldemort tentaria matá-lo, bem como as pessoas que ele amava. Todo o mundo bruxo estava sob ameaça do Lorde das Trevas e cada vez mais Harry percebia que ele estava no centro da luta.

Aqueles dias em que seu único medo era não ser pego fora da cama durante a noite foram aos poucos se extinguindo. Até, enfim, culminar no dia em que Harry decidiu não voltar para Hogwarts e focar seus esforços em destruir Voldemort. Se o mundo bruxo lhe deu a chance de ter uma infância feliz, também lhe tirou esta infância na mesma medida. O mesmo mundo bruxo o imergiu em uma vida adulta repleta de preocupações com o futuro.

Jon Snow (As Crônicas de Gelo e Fogo)

Kit Harrington como Jon Snow.

O bastardo de Winterfell não tinha uma vida ruim, apesar do desprezo recebido pela esposa de seu “pai” e de não ser herdeiro de títulos. Ao contrário da maioria dos bastardos de Westeros, Jon Snow foi criado em um castelo, desfrutando de todas as regalias que a vida nobre oferecia. Ele não precisava se preocupar em ajudar os pais no trabalho como normalmente acontecia em uma família camponesa. Desse modo, podia dormir tranquilo sabendo que teria todas as refeições necessárias lhe esperando no dia seguinte.

No entanto, ele ainda era um bastardo e isso aos poucos foi pesando cada vez mais em sua perspectiva de vida. Na visão dele seu meio-irmão Robb herdaria Winterfell e o título de Protetor do Norte, enquanto Bran e Rickon governariam castros em seu nome. Quanto a ele próprio, sendo filho ilegítimo não teria nada para herdar. Ele precisava encontrar algo para dedicar a sua vida ou viveria para sempre da caridade de seus meios-irmãos.

Buscando um propósito

Partindo com seu tio à Muralha e ingressar na Patrulha da Noite, ele deixa para trás a sua infância, buscando um propósito para si mesmo. Talvez o que tenha verdadeiramente motivado Jon Snow a vestir o manto negro da patrulha não fosse a vontade de servir aos Sete Reinos. Suas motivações eram frutos da inquietação com o futuro que Kvothe tanto fala. Jon sabia que os dias despreocupados na companhia de seus irmãos logo chegariam ao fim. Ele tampouco poderia ficar para sempre brincando de espadas com Arya, sua irmã preferida.

Obviamente que mesmo na Muralha a vida de Jon Snow continuou tendo um caráter imediatista. O que mudou era que, em vez de correr pelo castelo com seus irmãos, ele agora defendia os Sete Reinos ao lado dos irmãos juramentados. Contudo, foi nesse novo imediatismo que ele encontrou de fato algo para guiar sua vida: a luta contra os Outros (Caminhantes Brancos).

A ameaça vinda do Norte fez o bastardo temer pelo destino de todos aqueles que viviam ao sul da Muralha. Ele logo percebeu que chegaria o dia em que o exército dos mortos marcharia pelo continente, trazendo desordem e destruição. Algo devia ser feito, o reino dos homens precisava se prevenir e ele escolheu fazer parte dos que um dia teriam que lutar. E, dessa forma, Jon pôde enfim deixar a infância para trás e adentrar na agitação da vida adulta.

Ciri (The Witcher)

Freya Allan como Ciri.

Assim como Kvothe em O Nome do Vento, Ciri também passa por uma jornada de amadurecimento ao longo de sua história em The Witcher. No início, ela é uma criança inocente que não está muito preocupada com o futuro. Posteriormente, eventos traumáticos ocorrem em sua vida, e ela precisa aprender a lidar com eles e a tomar decisões que afetarão seu futuro.

A destruição de Cintra é um dos eventos mais traumáticos da vida de Ciri. A cidade é sua casa e o lugar onde ela nasceu e cresceu, cercada por amigos e familiares. No entanto, durante a invasão nilfgaardiana, a cidade é atacada e destruída. Ciri testemunha a morte de muitas pessoas próximas a ela, incluindo sua avó, a rainha Calanthe.

Ciri é então forçada a fugir de Cintra com o objetivo de encontrar Geralt de Rivia, o bruxo destinado a protegê-la. Durante sua jornada, ela enfrenta muitos perigos e desafios, incluindo o risco constante de ser capturada pelos agentes de Nilfgaard. Essa experiência representa um amadurecimento rápido para Ciri, que passa de uma menina inocente a uma jovem mulher forte e determinada. Ela aprende a confiar em si mesma e a tomar decisões importantes sobre sua vida e seu futuro.

Sobre as nossas próprias inquietações

Abandonar a infância e se preocupar com o futuro não é algo exclusivo dos heróis da ficção, visto que todos nós passamos por esse processo. Em um momento somos crianças brincando num parquinho, mas em pouco anos estamos pensando em qual carreira vamos seguir. Em breve estamos nos preocupando com o vestibular ou como vamos fazer para pagar as dívidas que eventualmente começam a aparecer. Não é à toa que muitos dizem que a melhor fase da vida é a infância. Salvo exceções, esta é uma época que se resume a nos divertirmos sem pensar demais no futuro. E quando as tribulações da vida adulta chegam, nós pensamos na infância como um tempo bom que nunca mais volta.

Histórias de fantasia podem oferecer uma maneira de lidar com medos e inseguranças que muitas vezes acompanham a transição da infância para a vida adulta. Personagens que enfrentam monstros, bruxas más e outras ameaças sobrenaturais podem simbolizar os medos e perigos da vida real. Ver esses personagens superarem esses medos pode ajudar os jovens a encontrar sua própria coragem para enfrentar seus próprios desafios.

Além disso, muitas histórias de fantasia apresentam personagens que passam por uma jornada de autodescoberta. Eles aprendem a aceitar e amar a si mesmos, ainda que sejam diferentes ou “estranhos”. Essas histórias podem ajudar os jovens a se sentir mais confortáveis ​​em sua própria pele. Assim como a encontrar sua própria identidade em um mundo que muitas vezes valoriza a conformidade. Portanto, a conexão emocional com os personagens em histórias de fantasia pode ser uma ferramenta valiosa para jovens que estão passando pela transição da infância para a vida adulta, ajudando-os a encontrar coragem, resiliência e autoaceitação.

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AUTOR DA MATÉRIA: Allan F. F. Gouvea

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